Isaac
[Escrito em 19 de abril, em parceria com João Victor]
Dia 19 de abril de 2024, às 23 horas e 42 minutos.
Oi, meu nome é Isaac e hoje é dia 19 de abril de 2024. Este é meu diário.
Minha professora disse que seria bom a gente ter um diário pra escrever as coisas. E hoje aconteceu um negócio muito interessante. Mas antes, eu vou contar da minha família rapidinho.
Eu tenho sete anos; meu irmão Moisés, onze. Nós somos muito amigos.
A gente mora na Tijuca, no Rio de Janeiro, com a nossa família. Somos judeus ortodoxos. Eu não sei bem o que significa a palavra "ortodoxo", mas eu ouço o papai falando sempre isso.
Nossa casa é grande, e moramos todos aqui - eu, Moisés e nossos quatro irmãos mais velhos. Não sei bem a idade deles e, como eles são mais velhos, a gente não conversa muito. E moram também o papai e a mamãe.
O sábado é nosso dia de shabat, que é o dia do descanso, para o judaísmo. Então, a gente meio que não pode fazer nada. Só as coisas básicas, tipo tomar banho, escovar dentes e comer. Mas a comida não é a mamãe quem faz no dia: ela já deixa pronta do dia anterior e a gente come fria mesmo, porque esquentar é ter trabalho e não pode.
Aí voltando pro dia de hoje, que eu já ia me esquecendo...
Estava muito quente hoje e, de noite, eu e Moisés fomos pro pátio da nossa casa, do lado de fora, ficar conversando. Tem o portão, então é protegido. Ficamos ali, do lado de fora, encostados no portão, conversando, e tentando arrumar um plano pra ligar o ar condicionado. Como ia ser dormir naquele calor? A gente não podia dormir no pátio, porque teria que levar a cabana, e o papai diz que no dia de shabat, a gente não pode fazer, tipo, nada mesmo.
Então, ficamos eu e Moisés montando um plano, pensando em alguma coisa. Alguma ideia, tipo detetive.
A gente mora numa rua de pouco movimento na Tijuca. Não passa ônibus e os carros passam todos com vidros fechados. E já eram quase vinte e três horas. A gente ia dormir no quente mesmo.
Até que passou um moço na nossa calçada. Eu olhei pro Moisés e a gente se entendeu no olho, igual a gente faz desde bem pequeno (tá bom, eu ainda sou pequeno, mas eu já tenho sete anos).
A gente nem precisou de um segundo pra se olhar.
- Moço, moço!
Ele voltou e disse: "oi, vocês estão presos?".
A gente até ia brincar com ele, mas a gente aprendeu que não pode brincar com coisa séria, e hoje era dia de shabat, como já falei.
"Sabe o que é? A gente está com muito calor, e a gente não pode ligar o ar. Você pode ligar pra gente?"
"Vocês estão sozinhos nessa casa?"
"Não, o papa, o papai e a mamãe estão lá dentro. E nossos outros irmãos também. Mas é que... como é que a gente vai falar... é que..."
"A gente é judeu, e hoje é o dia de shabat".
Aí acho que o moço entendeu. Será que ele entendia os judeus ortodoxos? Sei lá. Não importa. Sei que a gente não precisou explicar muito.
Aí ele entrou na casa com a gente. O papai nem se assustou. Moisés foi logo falando: "Ele veio ajudar pra ligar o ar".
O papai foi guiando ele pela casa, e o moço com o olho assim, comprido, curioso. O papai pediu pra primeiro ele ligar o ar do quarto dele com a mamãe, mas o moço disse que ia ligar o ar de todos. "Ninguém merece nesse calor vocês dormirem no calor", ele disse.
O moço era bonito, alto. Estava com uma blusa colorida, bem diferente das roupas que a gente usa. E no olho dele, parecia que ele participava de um campeonato, tipo "caça ao tesouro".
A nossa casa é meio bagunçada mesmo. E ele não sabia onde estavam os controles do ar condicionado dos quartos. E o papai não podia ajudar, tirar as coisas do lugar porque, né?, dia do shabat, como já falei. Nem mesmo o papai pode fazer nada.
E aí o moço entrava e saía dos quartos procurando. Procurou em cima dos móveis, das mesas, do sofá na sala, tudo.
A gente nem perguntou o nome dele, por isso estou escrevendo aqui no diário falando "moço", porque ele não tinha cara de "senhor", como a gente chama as pessoas mais velhas.
O moço então foi achando os controles, e ia dando mini gritinhos de alegria e satisfação. Era bem legal. Ele ligou todos os aparelhos de ar condicionado, e perguntou se aquela temperatura estava boa. Muito legal, ele.
Eu e Moisés estávamos orgulhosos porque foi nossa ideia de trazer ele pra casa, pra ligar tudo. Papai e mamãe ficaram felizes e orgulhosos e até fizeram um carinho no nosso cabelo.
Quando estava tudo ligado, perguntamos se o moço queria uma água (se quisesse, ele teria que se servir, mas ele não quis).
Descemos com ele. A gente ia apertar a mão dele, em agradecimento, mas ele nos abraçou assim, um de cada lado, e falou: "vocês são muito fofos".
A gente ficou assim, né? Meio sem saber o que falar. "Obrigado"? "Você também"? Sei lá. Mas a gente só teve mesmo coragem de perguntar: "todo sábado você passa por aqui pela frente, por favor?".
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