Elaine
[Escrito em 06 de agosto de 2024]
Se tem uma profissão que eu admiro nesta vida é a profissão de diarista (ou da empregada doméstica). É a profissional que sai da sua própria casa para cuidar da sua casa. Neste caso, da minha casa. Eu não sei como está a casa dela. Mas sinto o cheirinho de como está a minha.
Para além dos clichês da importância dos enfermeiros, médicos, psicólogos (olha ela puxando a sardinha). Mas esse Fotografando hoje vai ser pra falar da minha diarista. O nome dela é Elaine.
Elaine tem uma certa idade. Nunca perguntei a idade dela, talvez pela indelicadeza das coisas. Mas ela já é bisavó. Então, ela tem mais que eu. Talvez mais que você.
Elaine mora na Cidade de Deus e pega dois ônibus para chegar a minha. Eu não tenho problemas com horários e ela sempre chega entre 11h00 e 12h00 na minha casa (mas sai depois das 20h00, sempre, o que me deixa sempre preocupada).
Não tem um dia que Elaine não chegue cantando, gritando, e falando chegue-ei!
Aqui em casa, são 4 gatos. Ela cumprimenta todos, sabe o nome de cada um, e faz carinho em todos eles. Todos os quatro adoram Elaine. Reviram o lixo que ela juntou no cantinho, fuçam o balde cheio de água com cloro, e deitam na cozinha molhada. E eu morro de rir quando ela diz: "Joaquim abençoado, em nome do Senhor!"
Elaine sempre me conta das histórias da vida dela, e da sua família. Fato é que eu admiro Elaine e tenho um carinho por ela muito grande, desde o primeiro dia, quando ela veio faxinar a minha casa sozinha, sem nenhum móvel e nem cadeira para sentar. Ela chegou quando tudo era mato mesmo. Quando era só piso, parede e teto. Não tinha nós, e nem os gatos.
Elaine tem uma filha Thamires, e um filho, que já se foi. Este filho foi assassinado, com 17 anos, pela milícia. Tinha sido do tráfico, mas já tinha saído do tráfico e, por este motivo, não podia morar com ela (na Cidade de Deus). Morava na casa de amigos, em Vargem Grande. Toda semana Elaine ia lá levar comida para todos, para a semana. E seu filho era feliz lá.
Na sexta, Elaine falou com ele: "ore pelo Deus que sua mãe crê". No sábado, ele foi assassinado.
Elaine sabia que ele ia morrer. Não tem dor pior nessa vida do que a dor de perder um filho.
Avisaram que ele tinha sumido. Parou um carro, homens encapuzados, e levaram ele no porta malas. Ela sabia do seu filho morto, mesmo sem corpo. E ela sabia que, no porta malas do carro, o filho dialogou com Deus. Porque ela dialogou com o filho, com o interior dele, e sabia que ele tinha se conectado com Jesus. Isso não é lindo, meu Deus do céu?
"Eu abri a Bíblia e pedi ao Senhor uma palavra", e Ele me disse que meu filho tinha ido embora. "Eu só quero o corpo do meu filho", ela falou para todos.
Juntou um cunhado, um amigo, um vizinho, e foram ao IML. Lá estava o corpo já sem vida do seu filho. Elaine ajoelhou e agradeceu a Deus, pois Ele tinha dado o que ela pedia: o corpo do filho para ser enterrado com dignidade. E assim ela o fez.
Muitos anos depois, uma ex-namorada do filho apareceu grávida de uma menina. E dizia que a filha era neta de Elaine. Não era. Muitos anos depois fizeram teste de DNA. Quando nasceu, a mãe, menor de idade, largou a neta com a avó Elaine.
Elaine criou e cria até hoje a Victória, já com 17 anos, como neta. Ela não sabe que não é legítima. Victória chama Elaine de mãe, apesar de saber que é avó. Sua avó legítima. E vivem juntas, as duas.
Victória fez curso de cabelereira, de unha de acrigel, e Elaine me mostra as fotos e os vídeos, e Victória arrasa nas tranças e nas unhas. Elaine levou docinhos (que ela também cozinha divinamente) para a professora do curso de unhas, em agradecimento, ao final do curso. A professora adorou, e encomendou. Elaine não teria como fazer, por conciliar os dois trabalhos (ser diarista, boleira e doceira). Mas Elaine falou que faria de novo; era só a professora pagar o material. Elaine fez, a professora pagou, e ainda deu o curso avançado para a neta de graça. Elaine é muito grata a ela.
A mãe de Elaine, que dava muito trabalho, precisava dos cuidados dela diariamente. Que dava banho e comida antes de sair e ao chegar. A sua mãe ficava com Victória pra Elaine sair da sua casa para cuidar da casa dos outros.
Elaine também tem o neto Gabriel, que mais uma vez, não é seu neto legítimo. Mas é como um filho. Gabriel foi do tráfico e saiu. Tanto Elaine orou, orou, orou, ele conseguiu sair do tráfico. Mas ele devia dinheiro a eles, e precisava pagar a dívida. Era alta. Alguns mil reais. Ajuda daqui, ajuda dali. Pagou a dívida e saiu do tráfico vivo, "em nome do Senhor".
Um dia errado, uma hora errada, Gabriel tava ali, na Cidade de Deus. Ia comprar um lanche com a namorada. Foi baleado. Foi levado preso "em flagrante".
Foi pro hospital penitenciário. Operou a perna. Elaine orou. Corria o risco de perder a perna. Agradece a Deus que não perdeu a perna, Gabriel, dizia a avó. Ela não conseguia vê-lo, pois era hospital penitenciário. Tava preso na cama, com algemas, e a perna cheia dos parafusos. Ficou quase bom e foi transferido para a penitenciária.
Tem a custódia, que Elaine explicou que é só a hora de levar as coisas para os detentos, como roupas, chinelo, material de higiene, limpeza, roupa de cama, etc. Neste dia, é só levar as coisas. Elaine já levou tudo. Tem que fazer a carteirinha pra visitá-lo. Sua filha, Thamires, fez a carteirinha. Parentesco: amiga. Na verdade, é tia, mas ele não é neto legítimo, então, não é parente.
Elaine foi fazer a carteirinha dela. "Não pode ser duas amigas". Na carteirinha, amiga, só uma amiga, disseram a ela. A policial que atendeu Elaine olhou nos fundos dos olhos dela, e perguntou: o que você é dele? Madrasta, ela disse. Ela sabia que, sendo madrasta, não tinha comprovação. Pensou ali, em um segundo.
- É casada com o pai dele?
- Não. Já fui casada. Mas não mais.
A policial foi lá pra dentro, e foi conversar com outro policial. Deixou Elaine sozinha. Thamires estava lá embaixo, na rua. Elaine ouviu: "você precisa ver a emoção dessa senhora falando do detento" (mas eu nem tava chorando...). E Elaine se comoveu da policial chamar o seu Gabriel de detento. "O preso perde o nome", Elaine sabia. Mas não pra ela.
Volta a policial.
- Vou fazer a carteirinha pra senhora. Mãe adotiva. Mãe adotiva do Gabriel.
Aí Elaine chorou.
Antes mesmo de Gabriel ser preso, teve uma namorada. Ela engravidou dele, ainda ambos menores de idade.
Elaine participou do parto da sua bisneta: Laurinha. Todas as vezes que vem me mostra fotos e vídeos de como ela está esperta. E também de como parece com ela, a bisavó, apesar de não ser do meu sangue, Elaine diz.
Nos vídeos do parto da Laurinha, só se ouve Elaine dando "graças a Deus" e "como a minha bisneta é linda". Hoje Laurinha reveza entre morar com a outra avó, Edna; e com Elaine, na sua casa. São elas que criam. A mãe da neném sumiu no mundo e aparece de vez em quando.
Mas isso tudo pra contar que eu errei a compra. Hoje, Elaine chegou e logo em seguida eu usei minha hora do almoço para ir ao mercado comprar algumas coisas que faltavam pra casa.
- Você vai trazer muito peso, Lu?
- Não, acho que não. Quer alguma coisa?
- Quero as coisas para levar para o lanche do Gabriel. Amanhã é dia de custódia e quero levar lanche pra ele. Pode ser pão de forma, pão de cachorro quente, queijo e presunto.
Na hora, comprei mortadela sem querer, crente que era esse o pedido.
Cheguei em casa e mostrei tudo a Elaine, das compras, e não era mortadela, mas serve também, ele vai gostar.
Quando digo que todo mundo pode ser nosso professor, é à pessoas como Elaine que me refiro. Elaine é muito minha professora.
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