Rita

Conhecemos Rita numa sexta-feira dessas. Um daqueles dias que íamos ao teatro.


Uma sexta-feira seguinte, fomos ao teatro novamente, no mesmo local. Escolhemos a refeição-pré-teatro em função da Caixa. A Rita. Até então, não conhecíamos a sua história. 



Pedimos a refeição, reconhecemos a profissional, cumprimentamos pelo nome (ela soube, então, o nosso) e, ao final do teatro, mais de 23h, no "xixi-antes-de-ir-pra-casa-porque-a-gente-mora-longe", encontramos Rita no banheiro, já sem uniforme.



E foi lá que conhecemos sua história. Antes, a gente conhecia a Rita-caixa. Agora, a gente conhecia Rita-ser-humana.



Desculpe-nos se a gente não parecer lógica ou cronológica. Pela história, basta que a gente escreva com / sobre emoção e sentimentos.


Rita, menina sozinha, sempre meio rejeitada. No dia em que seus olhos e de seu filho se fitaram pela primeira vez, seu mundo se abriu e ela sentiu que passou a existir a partir daquele momento.

Um dia, apenas com seu filho nos braços, resolveu trilhar o seu caminho.


Rita veio do Nordeste com 22 anos. Hoje, tem 25 anos.



A viagem era longa e distante. Ela ouvia dizer que eram quase dois dias viajando. Mas, seu tesouro estava com ela: Augusto, seu filho, com dois anos recém completos. 



Augusto era uma criança calma, tranquila, quieta. Permanecia quase sempre em silêncio. Tinha a pele bem branquinha, como a mãe, e os olhos negros, grandes e expressivos. Sorria pouco, mas era bastante expressivo. 



- Mainha, falta muito?

- Falta, filho. Descansa. Dorme aqui, ó.


E ele dormia, e acordava, e dormia, e nada de chegar esse Rio de Janeiro.



Rita ficou na casa de uma senhora, amiga da sua avó, na Barra da Tijuca. Trabalhou como doméstica, em troca de abrigo. Morava no quartinho de empregada, com Augusto e, fazia "as coisas de casa", para dona Eliza. 



Dona Eliza indicava Rita para passar roupa e cozinhar na casa de amigas, aos domingos, e era nestes "bicos" que Rita ganhava algum. 



- Olha, eu vou, mas tenho o Augusto. Ele tem que ir comigo. 



As patroas gostavam do menino, que ficava sempre sentado embaixo da tábua de passar roupa, ou ao lado da pia, quieto, observando os movimentos. 



Rita, apesar da vida com poucos recursos, era feliz. Seus olhos grandes sorriam, mesmo quando ela não. O mesmo acontecia com Augusto. 



Nessas viagens para as casas das outras "donas", Rita ia de ônibus com ar condicionado. Numa dessas, após algumas semanas, Augusto adoeceu. Uma gripe que não se curava nem por nada. Febre, dor no corpo, mal comia. Emagreceu.



Dona Eliza liberou Rita um belo dia para levar o menino no médico. O hospital público mais próximo era em Jacarepaguá e lá foram os dois. 



- Não há de ser nada, Augusto, meu filho. O doutor vai ver você, dar um remedinho, e já já você fica bom de novo. 

Mas Augusto já estava dormindo, no seu colo. 


O médico atendeu Augusto - e a mãe, com os negros olhos vivos e preocupados - e diagnosticou: "pneumonia". Vai precisar ficar aqui, com a gente.



Rita conseguiu um celular, com a mãe da criança da cama ao lado de Augusto e ligou pra dona Eliza.



- Dona Eliza, a senhora me desculpe ligar essa hora. O doutor disse que Augusto tá com pneumonia e vai ter que ficar. Eu vou ficar com ele. Não posso deixar ele aqui, só. Vou avisando a senhora, tá?



Tá. Claro. Dona Eliza era boa gente. Sua filha foi ao hospital, no dia seguinte, e levou uma muda de roupa para os dois, e um cobertor. Era inverno e fazia frio. 



Rita ficou amiga da Carolina (a mãe de Emerson), e elas conversavam, enquanto seus filhos dormiam. Emerson tinha operado de apendicite, aos nove anos, e já já estaria de alta. 



Augusto preocupava os médicos, que não apresentava melhoras. Em quatro dias, o menino morreu. De manhã cedinho, quando Rita voltou do café da manhã, Carolina cochilava. 



Foi dar um beijo no filho e sentiu-o frio. Já estava morto. Ela não sabe bem que horas ele morreu. Devia ter sido de madrugada, porque ele já estava ficando com o corpinho gelado. 



No dia seguinte, Emerson teria alta e mãe e filho iriam embora.



- Vamos com a gente, Rita. A gente mora aqui perto. Lá na casa que você trabalha, tudo lembra Augusto. É triste, mas vamos começar vida nova, amiga. 



Rita foi. Pediu um dia para ir na dona Eliza, pegar suas poucas coisas, se despedir da dona, e viver na casa de Carolina que, nesta altura, era sua única amiga, após quatro meses de Rio de Janeiro.



Rita só fazia chorar. Em silêncio. As lágrimas só saíam de seus olhos negros e, agora, tristes. 



Foi viver com Carolina no Rio das Pedras, uma comunidade ali, perto do hospital. Em poucas semanas, a amiga conseguiu um emprego para a mãe de Augusto. 



Era longe, mas Rita ia lendo os livros da irmã de Carolina, que era professora. Ia ser Caixa da Batata Inglesa. 



Jamais esqueceria de seu filho, a dor jamais cessaria, mas Rita agora, conseguia olhar para o mundo fora da janela do ônibus. Como trabalhava à tarde / noite, saía de casa às 11h30 e via gente pela rua... [Diferente de antes, que só ficava na casa de dona Eliza, sem sair, quase].



No caminho para o trabalho, viu uma creche e resolveu, um dia, sair mais cedo do trabalho, para passar lá. Quem sabe ela não conseguiria um emprego de meio período? De manhã cedo? Ajudar as freiras? Podia complementar seu salário. 



Hoje, Rita ajudava Carolina com as compras e contas da casa, e ajudava a cuidar de Emerson, que não tinha mais pai. Planejava alugar um cantinho pra ela, ali por perto, mas Carolina dizia que queria a amiga sempre por perto. Rita tinha, agora, uma amiga, uma irmã, uma família.



As irmãs aceitaram a ajuda de Rita, na creche. Ela trabalhava de 8h às 11h, e ficava na experiência, ainda, e, portanto, sem remuneração. Mas Rita gostava do trabalho, das crianças...



Cuidava dos pequenos, bem pequenos. Aqueles que quase não andam ainda. Talvez uns 10, 11 meses. 



E, um dia, saindo da creche, indo pro trabalho, Rita viu um menino sentado, no muro, de costas. Sozinho. O cabelo, preto, liso, e as mãos ao lado do corpo magro.



- Irmã Dulce, qual o nome daquele ali?

- Aquele sentado?
- Sim, o sozinho.
- Alfredo. O Alfredinho. Todo mundo gosta dele, mas é muito calado, quieto. Quase não fala.
- Qual a idade dele?
- Dois anos e quatro meses.


Quase a idade que Augusto teria hoje, se fosse vivo, pensou Rita.



Antes de ir embora, Rita passou por Alfredo. 



- Oi, Alfredo, eu sou a Rita.



E olhou para seus olhos. Negros, grandes. Alfredo não disse nada. Mas sorriu, só com os olhos.



Naquele momento, Rita entendeu que Augusto tinha sido um anjo que passou pela sua vida para que ela encontrasse seu sentido.



E uma única lágrima caiu, em Rita. E no seu coração.




[Um obrigada grande e silencioso a:

- Rita, que passou por nossas vidas e permitiu que escrevêssemos a sua história.
- Sandra e André, que perceberam que Rita poderia virar personagem.
- Thais, que viu a história, e permitiu que eu escrevesse, a partir do seu olhar]

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