Dagmar

[Escrito em 31 de maio de 2014]

Conheci Dagmar em abril, num dia qualquer, numa ocasião qualquer. Não importa o eu nesta história. 

Dagmar existe na vida real, e conversamos durante cerca de trinta minutos. Eu não precisei perguntar nada. Dagmar contava tudo, sua história de vida, tão inusitada.

Apesar do nome ambíguo, Dagmar é um homem. Tem cinquenta-e-cinco anos, e mora no Centro, na rua de Santana, sozinho. É um homem grande, corpulento. Alto, gordo, muito cabelo na cabeça. Cabelo liso, grisalho, despenteado. É um homem simples. E sujo. Fede um pouco, a suor. Tem as mãos e unhas sujas. Sua roupa é mal lavada. 

[Não tenho e nunca tive problema com limpeza / sujeira. Ou com pessoas perfumadas ou fedidas. Acredito, até, que o fedor dignifica o homem. Um homem sujo é digno de seu cheiro. Falamos disso em outro momento].

É o filho mais velho de uma família de outros quatro irmãos, todos também homens. Sempre foi afeminado, desde menino, e nunca teve problemas com a sua condição sexual. Sabia-se gay (gosta deste termo) desde quando viu seu próprio pau duro, pela primeira vez, aos nove. 

Os pais, acha, sempre notaram. Nunca falaram. Nunca conversaram. Nem sobre sexo, nem sobre sexualidade. Nem sobre homossexualidade. Conversavam pouco. 

Na escola, no entanto, Dagmar sofria muito preconceito. Hoje, se chama bullying. Na época, não lembra o nome que tinha isso. Não importava o nome que tinha. Importava que não gostava.

As brincadeiras começavam pelo seu nome. "Dagmar. Dargmarzinho? Dagmarzinha?". O nome tinha vindo da sua avó materna. Depois de quatro filhos, sua mãe - dona Bianca - achava que vinha uma menina. Escolheu o nome de sua mãe, e acabou ficando. "Serve pra macho também", dizia Nilton, o pai. E ficou Dagmar.

Dagmar gostava do nome que tinha. Não se envergonhava. Nunca se envergonhou de nada. Nem de ser gay. Gostava, até. Vivia uma vida escondida, secreta.

Quando terminou a escola, no entanto, não queria mais estudar. Não sentia vergonha, de nada. Mas passar por aquilo tudo? Aquelas brincadeiras todas? Não, não...

"Filho meu tem que ter uma profissão", dizia seu Nilton. "Não vai ficar sem fazer nada".

Eram ambos muito humildes, seus pais. Sua mãe era costureira. Seu pai, mecânico de automóveis. Ambos, sempre autônomos. Mas aquelas eram as profissões deles. E eles se orgulhavam do que eram. De quem tinham se tornado.

Dagmar tinha 19 anos. Seu Nilton lhe deu o equivalente a R$ 6, hoje em dia. Dinheiro pra ir e voltar. "Me volte com uma boa notícia". Era uma questão de honra. Sair de casa. Voltar pra casa. Ter uma boa notícia pro seu velho pai.

Apesar de não ser religioso, Dagmar gostava da igreja, onde conversava com o padre, seu amigo. Passou lá antes. "Deus há de me dar uma luz". Uma placa, do lado de fora da igreja, mostrava um panfleto de cursos do SENAC, com o endereço. Era ali perto, ele sabia chegar. Pegava o ônibus e rapidinho estaria lá.

Dagmar foi. Logo na entrada, um painel grande, maior mesmo do que ele. Ele ficou ali em frente. Uma lista de mais de cinquenta cursos. Lia, relia. "Me volte com uma boa notícia"...

- Oi?
- Oi.
- Quem te trouxe?
- Tinha um cartaz na igreja e eu vim.
- Qual seu nome?
- Dagmar.
- Que curso você quer fazer, Dagmar?
- Sei não senhor.
- Meu nome é Nakamura e eu trabalho aqui. Vou te ajudar. Me acompanhe.

Apesar do nome, ele não era oriental. "Parece o mestre Ioda, você conhece?". Não, eu não conhecia. Mas continua, Dagmar. 

Nakamura o levou para um anfiteatro. Um palco grande, com pouca iluminação. Duas cadeiras, uma de frente à outra. Uma platéia vazia. Nem sabe quantas cadeiras tinham ali, não contou. 100? 200? 600? Não importa. Dava pra muita gente.

Dagmar sentou-se. Nakamura, de frente.

- Quantos anos você tem, Dagmar?
- Dezenove.
- Seus pais são vivos?
- Sim, são.
- Eles não vieram com você...?
- Estão trabalhando, trabalham muito. A profissão [Dagmar gostava desta palavra] deles é mecânico e costureira. 
- Mora só você e eles?
- Moro. Meus quatro irmãos são mais velhos, casados.
- Você não sabe qual curso vai fazer?
- Não, senhor.
- Me chame de você.
- Não sei.
- Eu vou te ajudar, então. Qual a parte da casa que você mais gosta, Dagmar? Não vale o seu quarto e o banheiro.

Dagmar riu. Gostava do banheiro. De tomar banho. De olhar seu próprio corpo, gordo. 

- A cozinha.
- Por quê a cozinha?
- Minha mãe é costureira, mas ela cozinha pra fora. Eu me lembro, na minha infância, eu na cozinha, roubando as coisas dela. As comidas. Eu gosto de comer...
- Auxiliar de cozinha. Vai ser o curso que você vai fazer. 
- Tá. Mas eu não sei cozinhar. Sei comer.
- Não precisa saber. Nem cozinhar, nem comer. Aqui você vai aprender. Tudo. São oito cursos, um de cada vez. São cinco anos estudando. Não precisa fazer todos, se você quiser. Faz o primeiro, depois o segundo, o terceiro... E assim vai.
- Entendi. Mas deve ser caro. Só vou poder fazer um mesmo, acho.
- Não, Dagmar. É tudo gratuito. Mas tem que vir. Não adianta cabular as aulas. Porque aí perde. Entendeu?
- Entendi. 
- Vamos, me acompanhe.

Dagmar ainda ficou um tempo - não sabe quanto - em pé, parado, na frente do palco. A platéia, com todas aquelas cadeiras, todas vazias. Cada uma das cadeiras olhava para ele. 
Sorriu e foi.

- Fernanda, este é o Dagmar, novo aluno do curso de Auxiliar de Cozinha 1. Quando as aulas começam? 

Era o dia seguinte. O primeiro dia de aula.

A boa notícia chegou. Timidamente.
No ano seguinte, aos vinte, Dagmar já trabalhava na cozinha do refeitório do SENAC. Nos quatro anos seguintes, profissionalizou-se, e tornou-se chef de cozinha. 

Agora, Dagmar tinha uma profissão da qual se orgulhar.

Agora, seu Nilton podia morrer em paz. Seus filhos estavam encaminhados.

Hoje, Dagmar sustenta a sua casa, um kitnet; e a casa de sua mãe, na Penha, com as comidas que faz. Já alimentou gente importante. Já alimentou gente que nunca nem viu, nem sabe quem são.

Nunca teve vergonha de nada. Só muito orgulho de ser filho do seu Nilton, que fez com que ele tivesse a profissão mais linda que ele poderia escolher.

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