Francisco e Vicente

(Escrito em Junho de 2015)

O cenário era o Centro do Rio, ali, perto da Carioca.
O horário? Tipo quase 20h. Era uma quarta-feira. Dia de consultório.
Um dia de Junho, num frio úmido bem ruim. Choveu de manhã torrencialmente, e as muitas poças d'água nas ruas faziam do frio um lugar gélido.

Foi quando avistei Francisco. Naquele trecho da Rua Uruguaiana, bem no início (esquina com Rua da Carioca). Em frente ao prédio nº 10 da rua.

Na calçada do meio, onde há aqueles bancos de cimento, Francisco tocava um instrumento (que descobri chamar-se escaleta). É uma corneta, acoplada num mini-teclado. Parecia um brinquedo de criança, mas não era, pois o som era bom e bem alto.

Francisco, apesar dos seus 38 anos, morava com os pais, já bem idosos e aposentados do Banco do Brasil. Era sustentado por eles "porque não parava em emprego nenhum". Era um rapaz (sim, ele se chamava de "rapaz") triste. Queria ser músico. Era músico, diriam os amigos. "Mas eu não ganho merda nenhuma com isso", diria ele. "Mas ainda vai ganhar". 

A partir da insistência de uma grande amiga, que o presenteou com a escaleta, ele resolveu tocar em lugares estratégicos, do Centro do Rio, pelo menos, para arranjar um trocado pra passagem e pro almoço "até descobrirem o seu talento, Fran".

A amiga era a única que o chamava de Fran, ao contrário de todos os outros amigos, para quem ele era Chico.

Francisco, na verdade, sempre preferia ser chamado de Fran, pois "Chico" lhe remetia a Chico Buarque e ele se sentia a anos-luz de distância do "seu mestre", e achava quase um desrespeito ter o mesmo apelido que ele. 

Pois bem. Francisco estava ali, sentado, tocando Alceu Valença, a música "Morena Tropicana", que a sua falecida madrinha adorava cantar e dançar. Já desde menino ele bailava um forrózinho com a dinda, nos almoços de domingo. 

No chão úmido, uma folha de jornal, para não molhar e sujar seu chapéu, onde as pessoas depositariam um "qualquer" para ele. 

Eram 20h quando passei. Francisco estava ali desde às 17h e já tinha conseguido R$ 14. Já dava pra pagar a passagem e o lanche do dia.

Pode ser que não faturasse mais nada hoje, mas ia tocar até 21h, pra chegar em casa após às 23h, e encontrar os pais já dormindo. 

____________

Do outro lado da calçada, Vicente. 

Apesar dos 75 anos, ainda trabalhava. Há vinte, no mesmo prédio comercial (o Uruguaiana, nº 10).
Era Auxiliar de Serviços Gerais e trabalhava no turno da tarde-noite (largando às 22h). Fazia atividades como: tirar os lixos das salas e dos andares, limpar as janelas, vidros, corredores, escadas, elevadores. 
E, ao final do dia, levava os lixos para o lado de fora do prédio, pois às 21h passava o caminhão para carregar tudo. Ele tinha que ser rápido. "E, apesar da idade, eu sou ágil sim senhor", dissera ele na entrevista de emprego, há mais de vinte anos atrás.

Vicente era casado há muitos anos e tinha três filhos e cinco netos. Dois dos seus netos ainda moravam com ele (e com a filha mais nova). Como a filha e sua esposa pegavam cedo no serviço, Vicente acabou optando pelo horário noturno do trabalho, para poder deixar os netos na escola, que não era muito perto de sua casa, mas era onde conseguiram vaga.

Então, a família se ajeitava. Vicente já chegava em casa de banho tomado, e era só esquentar a janta e ir dormir. No dia seguinte, acordava cedo, levava as crianças pra escola, voltava pra casa e ajeitava tudo, pra quando a filha e a esposa chegassem do trabalho, estivesse tudo limpo e ajeitado para elas descansarem.

Foi quando passei e vi Vicente carregando aqueles sacos de lixo enormes (um em cada ombro), e pousando-os no chão, com cuidado, onde já existiam outros tantos.

Exatamente ao mesmo tempo, Francisco tocava a música preferida da dinda ("Morena Tropicana").

Ainda consegui ver Vicente sacolejando um pouquinho as pernas finas e cansadas... "Morena Tropicana... Eu quero seu amôôôô... Oi, oi, oi, oi..."

Francisco não podia ouvir Vicente cantando; estava longe.
Vicente não podia ver o olhar triste - apesar de talentoso - de Francisco; estava escuro.

E, apesar da noite escura, fria, silenciosa e vazia do Centro do Rio de Janeiro, eu ainda consegui ver poesia e amor no coração destes dois homens.

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