Sobre os mendigos

[Escrito em Outubro de 2014]

Eu pego sempre o mesmo caminho para ir à academia, que fica a exatos 750 metros de casa. O celular, plugado no rádio, me tapa, com os fones, o ouvido para sons da rua. Mas não os olhos para olhar para gente.

Na praça Cardeal Arco Verde há uma "família" de mendigos. Digo família-entre-aspas, pois acho que eles são uma família. Meu olhar diz isso, mas, como não tenho certeza, prefiro "aspar". A família têm dois cães.

Hoje, o seu dono - um dos moradores da família - atravessou meu caminho, com um dos cães. Por um mini-segundo, eu achei que estavam brigando.

O cão subia e descia do canteiro e o dono corria para lá e para cá. Eles estavam jogando futebol! Jo-gan-do-fu-te-bol. A bola era uma pequena garrafa - já amassada - de água. 

Não era aquela brincadeira de jogar algo longe e o cão pegar. Era futebol. As pernas abertas do rapaz eram o gol. E ambos eram jogadores e goleiros. E a bola ia e vinha, pela calçada estreita. O cão sorria. O dono também. 

Eu quis fotografar a cena, mas eu ia atrapalhar o jogo. Eu estava no meio do campo deles. Ainda consegui sorrir para ambos e dizer: "coisa linda vocês dois".

"Estamos jogando", ele disse. O cão sorriu - para ele, não para mim. E pedia mais jogo. 

Eu fui para a academia. 

Na volta, procurei pelos dois. O cão, dormia. São dois (cães) e dormiam separados, apesar de amigos. 

O dono do cão - e jogador de futebol - estava sentado. Atrás dele, outro mendigo o penteava, com cuidado. Ele se olhava em um pequeno espelho, o trabalho do colega.

O pente fino passava pelos seus fios duros e sujos. A mão vinha em seguida, ajeitando. O que penteava (chamá-lo de cabeleireiro, eu seria leviana) tinha cuidado, delicadeza. O que era penteado (chamá-lo de cliente é ser igualmente leviana) olhava, para si, através do espelho, com orgulho. Se acha bonito. Quase sorri. 

Eu, que parei para ver a cena com mais cuidado e detalhes, quase fotografei. Mas eu não seria respeitosa. Eles estavam em casa, no seu momento de intimidade e cuidado. 

E, dali, do outro lado do canteiro, eu tiro os fones do celular e me permito ouvir o silêncio - e o amor e o cuidado - tão lindo, de uma cena tão poética e que me ensina tanto. 

[Antes de escrever este, eu gerei uma pequena "pesquisa" no Facebook sobre a terminologia "mendigo" ou "morador de rua".
Os amigos foram quase unânimes em escolher o termo "morador de rua".
Apesar de achar este mais apropriado (eu concordo com eles), sobretudo se estou falando deste povo de forma positiva, eu gosto da palavra "mendigo". Gosto do som que ela produz, quando ouço e falo. 
Não tem, portanto, nenhum tom pejorativo, ou negativo. Não há tom, aqui. 
Há, apenas, belezas de cenas que consegui captar. 
E, desculpem, eu continuo preferindo "mendigo" para denominar "morador de rua". Quando eu me refiro a eles, pessoalmente, prefiro perguntar seus nomes e tratá-los por como eles se chamam, e não por sua "condição social".
De qualquer forma, meu muito obrigada a todos que responderam à pesquisa].

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