E seriam seus setenta

Não sei da onde foi que comecei a gostar de escrever números com letras. Ao invés de 70, setenta. Acho que dá mais autenticidade. Só acho...

E a gente planejava uma puta festa para este dia, que seria amanhã. Não seria surpresa. A perspicácia da moça não permitia surpresas. 

Talvez fosse uma festa íntima, pra poucos e seletos amigos. Mas, festa com champagne, com vinho (como ela gostava), com comes-e-bebes-lights-feitos-em-casa. Aquele sanduíche colorido, aquelas empadinhas de queijo. Nada de muita carne. Os bolos da tia Rê, de preferência, com nozes. Ia ter música. Ia ter danças circulares. Ia ter LP do João Bosco, e do Caetano, e do Chico.

A gente planejava que o aniversário fosse no apartamentinho do Jardim Botânico (ou no play, como eu desejava, um festão!). 

Se no apartamentinho, a varanda ia ser o point. Se no play, o lado de fora do salão de festas, porque "aqui está muito abafado, não está?" era típico.

Mas, a festa planejada não vai acontecer. Nenhum de nós vamos celebrar, ou beber, ou dançar. Seus setenta não chegaram, AnaZ.

E eu lembro bem do seu último aniversário "viva". Sim, entre aspas.

Era dia 05 de outubro de 2011, você estava internada no CTI do Hospital Rio Laranjeiras, leito seis. Na saída da minha visita, eu perguntei às enfermeiras se podia trazer flores, ou algo no dia seguinte, pois seria seu aniversário. Não. Eu não podia levar nada. Eu podia me levar, apenas.

No dia seguinte eu fui preparada, então, para te dar os mesmos beijos, chamegos, massagens, pentear seu cabelo e celebrar seus sessenta-e-oito. Mas eu cheguei e você estava, já, dormindo. Em coma profundo, segundo os médicos, inexplicavelmente. Você só veio acordar mais de quarenta dias depois, e, perguntando pelo seu aniversário, que seria dali a alguns dias. Horas depois, você já se esquecia do aniversário, e falava de outro assunto. E assim foi durante quase diariamente até o dia 28 de abril de 2012, quando você resolveu se libertar do seu controle e deixar-se-ir-para-os-braços-de-Deus.

Acontece, AnaZ, como disse, na última carta que escrevi pra você (aqui), que você não vai ler esta (é uma carta?). Eu vou, nós vamos. Ou não. Não importa mais que leiam ou que não leiam. 

Importa, apenas, que seja sentida.

E eu sinto a sua falta. Hoje, no dia dos seus possíveis-setenta, mais ainda.

A forma como cada um sente - a sua presença e/ou a sua ausência - é particular, única e silenciosa. Você, por ser a minha nave-espacial que me trouxe a este mundo, é sentida profundamente. 

Eu sinto você aqui, agora, enquanto te escrevo.
Sinto você na casa do Nilson.
Senti quando estive lá com o André (como eu gostaria que você o conhecesse!), e que ele pegou vários dos seus livros emprestados. Eu podia ver você pulando, nos pézinhos magros, e dizendo: "pode levar, mas devolve, né?!" e "tem esse aqui também!".
Sinto você quando estou só, profundamente só. Às vezes, o André está ao meu lado e, ele sabe (e sente) que estou só, e ficamos ambos em silêncio. Eu te sinto ali. 
Não é uma sensação espiritual, metafísica. 
É como se eu sentisse você no olhar. No meu olhar, nos meus poros. De forma muito sutil. 

Eu não acho que você está feliz, ou orgulhosa, ou nada. [Peço perdão - e agradeço - aos amigos que dizem isso para mim, por diversos motivos].
Você não está mais. O que restou de você não tem mais a possibilidade de ESTAR.
Às vezes eu me pego rindo porque, essa coisa de "plano espiritual" eu imagino você, AnaZ, como uma ETzinha, com outros seres, todos verdes, se comunicando assim "pi-pi-pi".
E eu penso (e sinto) que máximo que deve ser essa coisa de ser outra coisa, e de não estar mais. 

Você esteve por sessenta-e-oito. Agora, você é. Por toda a eternidade. 


Eu, nós, te amamos.

Feliz idade nenhuma, portanto. 

Estou - estamos - bem. Em paz.
Nilson manda beijos. 
Eu também.

Te amo. Te amo. Te amo.
Para sempre.


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