Margot

Eu não conheci Margot pessoalmente, apesar de ter a sensação que sim.

Fiquei sabendo dela através da grande amiga, que a fotografou pra mim. E eu, que gosto mais das palavras do que das imagens-impressas-frias-fotografias, fotografo Margot por aqui para que, você, leitor, possa dar a ela, o rosto que quiser.

Vou me travestir da minha amiga - esta, sem nome - e fotografar Margot em primeira pessoa. Este conto, no entanto, foi escrito a quatro mãos. 

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Esta era, ou parecia ser, uma viagem como todas as outras com meu marido. Viajamos por diferentes cidades e países, desconhecidos por mim, até então. 

Alguns hotéis bons, agradáveis, limpos, cheirosos, arejados; outros, péssimos, parecendo motéis, daqueles de mal gosto: colcha roxa, cortina vermelha, com babados; tapete laranja; uns quadros horríveis na parede. O travesseiro, pelo menos, compensava o cenário tragicômico. Os hotéis, portanto, eram locais para dormir, nada mais. Ficar acordada, de preguiça, na cama, dava depressão.

Gostava de sair, então, à rua. Ir à feira e testar o meu francês. Ver paisagens, e flores, e vales, e céus ainda não vistos. E, agora, ver - e fotografar - gente. 

Foi num desses passeios pela França, em Reims, que conheci Margot. Uma - não muito - bela senhora, de 78 anos. Morava sozinha na rua da feira. Antoine, seu marido, morrera há quinze anos atrás, deixando "essa puta velha" sozinha, como ela se referia à sua pessoa.

Margot tinha duas filhas - Francesca, de 45 anos; Anne Marie, de 50. E três netos: Clarice, de 13 anos, filha de Francesca; Julie, de 17,  e Jean Paul, de 20, filhos de Marie.

Raramente, seus cinco vinham visitar a avó, o que a obrigava, apesar da idade, a se virar sozinha. 

Margot gostaria de falar da família com orgulho; mas não. Eles todos - filhas e netos - vinham vê-la uma vez por mês (quando vinham) e não ficavam sequer 10 minutos. "Ingratos!", diria ela.

A velha senhora percebia, na pele, a ausência de contato, a solidão da velhice. Após a morte de Antoine, Margot ficou só. 

Adoecer era, sempre, a sua maior preocupação. Orgulhosa que só, não pedia ajuda - nem à vizinha Joana, aquela espanhola tagarela. Se ela adoecesse ou morresse, portanto, a família só saberia quando o corpo - ou "a defunta", como ela diria - começasse a feder. 

Margot não era uma senhora espiritual, nem religiosa. Não acreditava em vida após a morte, ou em Deus. Rezava suas rezas [quase] mecanicamente. Seu corpo em putrefação, em casa, protagonizando a solidão de uma vida, a causava calafrios. 

Um corpo morto sobre a cama. Horas. Dias. Ninguém sentindo falta. Quanto tempo passaria? Quem veria a velha - e seu corpo - primeiro?

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Era um sábado nublado. Eu estava, de longe, com meu marido, olhando a feira livre quando vi Margot saindo de casa, com uma sacola que parecia lixo.

Margot - talvez pela vasta idade - era uma senhora lenta. Tristemente lenta. E curvada. Não corcunda; curvada. Pelas dores dela e da vida. Pela solidão.

Margot não olhava para os lados, para as pessoas, para o belo cenário à sua frente. Carregava, apenas, sua sacola de lixo. Seu lixo.

Cheguei, discretamente, um pouco mais perto e vi Margot murmurando alguma coisa,  absorta em seus pensamentos, enquanto jogava o seu lixo num daqueles latões de alumínio. 

Séria e carrancuda, Margot embrenhava-se na feira - tão colorida e perfumada - para comprar legumes pro seu almoço. 

A feira, apesar de feliz, não contagiava a velha só. Ela parecia ir às compras. 

Margot - em preto-e-branco - perdeu-se no meio do colorido perfumado da feira.

Só pude perceber que levava, no braço magro, sua sacola de pano, vazia e sozinha, que balançava no vento frio da manhã francesa. 

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