O dia em que perdi meu pai

(Escrito em 03 de novembro de 2022)

 

Tem um moço que diz que a gente não perde as pessoas. Mas foi este o verbo que me veio ao escrever este textinho.  


Seu Luiz já vinha tratando do câncer há dois anos. E estava muito emagrecido, como dizem os médicos, e Gaeth resolveu levá-lo na emergência. Ficou no CTI por uma semana. E no total de internação, 21 dias.


Diariamente, ou quase, eu ia visitá-lo na minha hora de almoço. Assim, correndo, como me é peculiar, pra dar um beijinho.


E, aos finais de semana, eu passava o sábado e o domingo com ele quase o dia todo, pra Gaeth poder descansar.


Este tempo junto aos finais de semana era valioso. Eu ria, brincava, lia, via TV e ajudava a cuidar do meu velho, junto com a equipe de enfermagem. Entre banho, troca de fraldas, virada na cama, tinha até umas coçadinhas marotas que ele pedia. Sem contar os pequenos delírios, de “tira meu chinelo” ou “apaga a luz do corredor lá de fora” (que era o corredor do hospital). 


Alguns momentos, pedia pra eu ficar pertinho. Pegava na minha mão e dizia que queria que eu fosse feliz e que Deus perdoasse os pecados dele. 


A equipe de enfermagem era, sem sombra de dúvidas, a melhor que já vi. Iam ao quarto dele só pra falar: oi, seu Luiz!!!! É a Fabiana, ou a Carla, ou a Marcele, ou a Carol. Todas muito mais do que profissionais: humanas, amorosas, cuidadosas. 


Muitas vezes, ao longo dos dias dos finais de semana, eu chorava. Ou silenciava. Rezar e meditar eu não conseguia. De jeito nenhum. Mas estávamos amparados. Eu e, sobretudo, ele.


No último final de semana, ele dormia quase que o tempo todo e já não interagimos mais. A fraqueza era extrema. Ele estava cansado. O sono e o dormir não era efeito da morfina ou do oxigênio, que ele já estava recebendo, mas do cansaço de estar ali, vivo. O corpo estava querendo descansar.


Adriana é uma grande amiga, há mais de 30 anos, cuidando dele e da Gaeth, minha mãe. Ela revezava, durante a semana, pra Gaeth ir em casa e descansar. No último dia, dia 01/11, Adriana me mandou mensagem e liguei pra ela às 10h53.. 


Ele tinha tomado banho e, como sempre, as enfermeiras medem os sinais vitais após o banho. Agora, os sinais vitais estavam quase inexistentes. Sem pressão e sem oxigenação. Ele ainda estava vivo, mas Adri estava me avisando pra me preparar.


Chorei muito e avisei que eu tiraria meu almoço às 15h00 e, então neste horário, iria pro hospital.


Em minutos, eu entraria em uma reunião de trabalho com amigos - Ciro, Fernanda e Carol - e contei esta ligação para eles. Ciro, sobretudo, disse: vai pra lá agora! Nada é mais importante do que o seu pai. 


11h15 saí de casa, correndo. Peguei um táxi e às 11h30 já estava no hospital. 


Avisei ao André. 

Você quer que eu vá? 

Não sei. Acho que sim. Me faria feliz se viesse.

Ele largou tudo e em pouco tempo estava lá comigo, conosco.


Como sempre, todas as vezes, na recepção era: “vou ver o meu pai, Luiz Augusto, no 322”. E subi pelas escadas. Cada minuto era valioso e esperar o elevador ia demorar mais. 


Cheguei no quarto e chorei. Parecia um passarinho. A respiração, quase inexistia. O coração, batendo bem devagarzinho. Aquele pai, com aquele vigor e aquela voz alta, gestos largos, um jeito altivo, às vezes até agressivo, agora era um bichinho por um sopro.


Colocaram nele num dripping de morfina e a Carol, enfermeira que o recebeu no primeiro dia no quarto, veio falar comigo e tirar minhas dúvidas. 


Ele sente dor? Não. Nenhuma dor.

Ele vai hoje ainda? Não hoje ainda. Mas a qualquer momento. 

Eu chorei. Muito. E Carol me abraçou.

Fala com ele. A última coisa que ele perde é a audição. Pode conversar que ele te ouve.


Eu de um lado da cama. Adri do outro. E eu falei com ele, aos prantos. Disse que o amava. Disse obrigada por tudo. Disse que ele podia descansar. Que eu e Gaeth ficaríamos bem. Disse que amava mais uma vez, e muitas e muitas vezes. Disse que a Gaeth estava a caminho. Que ele, por favor, esperasse por ela. Vamos combinar assim. Segura um tiquinho só.


Uma lágrima rolou nele. E muitas rolaram em mim.


Os olhos não abriam mais. Há muitos dias. Mas ele sentia. Sabia. Ouvia. Não estava em coma, os enfermeiros garantiam. 


Fabiana ia e vinha, pra limpar o quarto, e gritava pra ele: oi, seu Luiz! E ela chorou conosco.


Toda essa conversa, com a mão no coração dele. Estava magrinho. Não podia sentir tanto os batimentos. E enquanto eu conversava com ele, conversava também com a Adriana, do outro lado da cabeceira da cama. A gente rindo, interagindo, chorando. Lembrando dele no escritório. Dele brigando comigo. Gritando pra pedir à Adriana seu café com leite. E agora, olha a gente ali. E a gente se dando conta que não estava pronto pra partida dele. Que não queria que ele fosse embora. Mas ele estava cansado. 


De repente eu olhei e gritei: Adriana! Adriana!

Ela correu pra chamar a Carol, e de repente o quarto estava cheio. 


Ele foi? Foi.

Não foi. Mede de novo. A gente combinou dele esperar a minha mãe. A gente combinou!

Mede de novo, Carol.

Ela mediu de novo. 

Já tinha ido. 


Eu surtei. Chorei. Gritei. Não consegui ficar perto dele. Andava pelo quarto.

Veio enfermeira. Médico. De repente, eram seis, sete, oito no quarto. Além de nós: ele, Adriana e eu. 

Que horas são? 13h10. Vou atestar o óbito agora, 13h10.


Os médicos me pediam calma. Calma, nada! Tá maluco?

A Gaeth não tinha chegado. 

Quando ela chegou, a médica avisou, da porta “sua mãe está chegando”, e o desabamento foi ainda maior.

Ela acariciou ele. Dizia que amava. Que ele era o amor da vida dela. 

Foi lindo. Lindo. Dolorosamente lindo.

Sentamos ali. Olhamos. E choramos.


Gaeth foi em casa buscar roupa. Decidimos ser terno e gravata, como sempre foi, por tantos anos. Era assim que ele gostava de se vestir, disse ela. Então deixa ele ir assim.


Todo o tempo, fiquei no quarto com o André e o corpo do meu pai. No silêncio. 


Resolvemos a papelada. O cemitério. A funerária. 

Ele queria ser cremado. Vai ser cremado.


As enfermeiras vinham e iam. Precisavam tamponar ele. E prender braços e pernas. 

Eu arrumei o quarto com o André. Guardei tudo. 

Na hora de “colocar ele no saco”, preferi ir embora. Eu espero lá embaixo. 

Obrigada pelo trabalho de vocês. Belíssimas. Deus abençoe o trabalho de vocês. Obrigada.


Veio a funerária. Resolveu tudo. Teve que reconhecer o corpo.

André foi. Acompanhado, claro, e foi. 

Eu fiquei com a Gaeth e a Adri.


Às 18h saímos do hospital, entre obrigada, obrigada a você, obrigada por tudo. 

E, embaixo de chuva e de um dia cinza, voltamos pra casa, porque o dia seguinte era velório.


Meu pai fez uma trajetória bonita por este plano. 

Foi um homem presente na vida de muitos. Não presente fisicamente apenas. Mas presente como alma, como presença, como vigor.

Sempre foi um homem vivo. Sua voz, sua altivez eram marcantes. 

Nossa relação não foi só flores. Alguma relação é só flores?

Mas eu tenho mais a agradecer do que lamentar.

Agradecer não só pelas coisas físicas e materiais que meu pai proporcionou, mas sobretudo pelos aprendizados, pelas trocas. 

O meu bom humor vem dele. Meu lado brigão também.

Talvez o meu lado obsessivo pela correção e retidão também.

Dizem que sou parecida com ele. Até mesmo fisicamente. Ainda bem. 

O tempo, foi. Acabou.

O amor não vai. Não acaba. É para sempre.

Obrigada, pai. Amo você.




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