Tábata


Estava no ônibus, em caminho indeterminado, quando a vi. Ela estava no ponto de ônibus, no Mergulhão da Praça XV.  
Seu nome é Thabata, com Th no início mesmo. Ela não gostava muito do seu nome com o H, então, se a pessoa escrevesse errado, ela não corrigia. Neste caso, nós a chamaremos de Tábata, sem H. 
No auge dos seus 19 anos, estudava Técnico em Edificações no CEFET, no Maracanã, e estava esperando o ônibus pra ir à escola, no último período do curso. Ela morava em São Gonçalo e pegava um ônibus até as Barcas da Praça XV. Dali, seguia direto para o local de sua aula. 
No ponto de ônibus, avistei Tábata aos prantos. Com as lágrimas rolando, ela tirava e recolocava os óculos, em um movimento circular que parecia se dirigir ao infinito. Era um choro de raiva, mas indeciso. Ela chorava, parecia refletir e retomava a choradeira. A menina exibia um tremor por todo corpo. Sentava no meio-fio, balançava as pernas e cobria a cabeça com as duas mãos, como se estivesse se defendendo de golpes invisíveis. Um berro de Tábata seria a coroação de todos aqueles gestos. Uma agressão gratuita também não estava descartada. (E quem seria agraciado com tamanha descarga de energia?)
Tábata era a filha mais velha de quatro irmãos. As idades dos menores variavam entre 8 e 17 anos. Sua mãe era diarista em Niterói e trabalhava em duas casas de família. Todos os irmãos – e Tábata – eram filhos do mesmo pai, que, fazia sete anos, não aparecia mais. A mãe, dona Neuza, não falava dele e nem mesmo sabia por que bandas ele andava. Para a adolescente, a única imagem que havia restado do pai era de peças básicas de roupa penduradas no varal de casa. A camisa negra e a calça tremulando feito bandeiras fincadas em um solo conquistado. Andava só de cueca em casa. Só usava algum tipo de roupa quando ultrapassava o portão. 
- Se vocês virem algum parente de seu pai por aí, tentem pegar o telefone dele. Pelo menos, para vocês – que são filhos – terem contato com ele.
Tábata sabia que, na verdade, a mãe queria o telefone do Waldir para ela mesma falar com ele. Ele havia sido o único e grande amor da vida de Neuza. A mãe nunca havia se interessado em arrumar outra pessoa e nem sabia mais o que era flertar. 
A garota não suportava ver a sua mãe assim, infeliz, chorando pelos cantos, sustentando os quatro filhos com sacrifício. Ela, desempregada (conseguira emprego de telemarketing, mas não era boa com vendas e foi demitida após o período de experiência), vendo a mãe com dois empregos para alimentar uma tropa. Tábata tentaria ir atrás do pai para solicitar algum auxílio. Queria algo ao menos para seus irmãos menores. Ela se viraria. Não estava habituada a grandes coisas mesmo. A mãe ajudava na passagem. Ela levava comida de casa para a escola. Só conhecia a cota justa de dinheiro. Qualquer moedinha de R$ 0,05 tinha o seu local de importância no universo de suas parcas finanças. Às vezes, os cinco reais que levava de segurança na bolsa durava quase o mês todo. 
Em um determinado dia, Tábata resolveu sair mais cedo de casa. Ela tinha que chegar na escola às 14h. Geralmente, sairia de casa às 12h. Como o dia estava bonito e quente, almoçou mais cedo e saiu de casa às 11h. Seus irmãos ainda estavam na escola, e ela pôde tomar o seu banho demorado, em silêncio, como gostava, sem aquela gritaria toda de televisão, rádio, e os irmãos gritando pela casa. 
Tábata não estava nem feliz nem triste. Assim, assim, como ela gostava de dizer. Era uma menina sensível, de olhos vivos, apesar dos óculos de grau no rosto. Gostava de observar os detalhes das estruturas e das pessoas e, às vezes, perdia horas observando alguém ou alguma coisa. As pessoas a chamavam de distraída mas, na verdade, ela era mesmo centrada. Era uma menina quieta, silenciosa. 
Assim como não gostava de corrigir seu nome, também não gostava de discordar das pessoas que diziam algo sobre ela que não condizia com a verdade. Tábata sorria, fazia que sim, fazia que não ou embarcava em uma de tanto faz.
Ela e sua família moravam em uma favela (nunca gostaram do nome “comunidade”. Esse era só o nome para as propagandas oficiais de qualquer governo vigente) de São Gonçalo. Tábata vinha descendo as ruelas naquela terça-feira calorenta, muito mais distraída do que o comum. A sensação de alerta chegou em um salto. Viu um casal se esgueirando, se movendo furtivamente pelas ruelas locais e resolveu patrulhá-los. Algo chamava a atenção dela.  
“Conheço aquele jeans rasgado...”. 
Quando eles já haviam saído de seu campo de visão, Tábata foi, devagar e com cuidado, atrás deles. A menina, ela viu antes. Era uma colega sua, ali da vizinhança, a Monique. Um pouco mais nova que ela, de uns 18 anos. Fazia o tipo menina-bonita-com-carinha-de-sapeca, como a própria Monique gostava de se definir. E o homem? Ela não chegou a ver o rosto. Só o que sobrou de primeiro registro do homem foi a calça jeans. 
“Aquela calça rasgada no bolso esquerdo...” 
Com nitidez e algum malabarismo, Tábata pôde vê-los por uma fresta. Estavam aos beijos e amassos, no espaço estreito entre duas casas, muito perto de onde morava Dona Júlia. Não teve dúvidas: era Waldir, o seu pai. O homem de quarenta anos se exibia fisicamente para a menininha de dezoito. Xingamentos, suores, gemidos abafados e sua própria ânsia de vômito. 
Olhando para a complexidade da cena, Tábata ficou atônita. O vômito ia e vinha até a boca. Enojava-se desse ato, mas sequer conseguia buscar o ar. Podia fazer barulho. “Vou me atrasar pra escola”, pensou em um momento lucidez. “Fo-da-se”, disse lentamente, para extrair prazer da pronúncia, como se absorvesse parte do clima que captou. Ela não tinha o costume do palavrão. Viciou. Repetiu mais três vezes, cada vez mais lento. Ajudou a eliminar parte do mal-estar. Quase sorriu.
Era incapaz de dizer quanto tempo tudo isso durou, mas ficou ali, até ver o pai subindo a famigerada calça jeans em uma altura que lhe repusesse a compostura. Tábata era virgem, mas tinha uma orientação abrangente sobre sexo. Coisa da mãe, preocupada com o crescente número de adolescentes grávidas na vizinhança, e das escolas que freqüentou. Não viu surgir nenhuma camisinha que pudesse prevenir um possível irmão ou uma doença. Mais um. Mais uma. 
Waldir fez uma mesura e despediu-se da pequena com um beijo na mão, atingindo somente a ponta dos dedos. Ela deu um riso largo e esfregou os dedos por toda a extensão do cabelo liso e sujo do homem. Ele ainda olhou para os lados antes de seguir seu caminho. Tábata teve tempo de esconder metade do rosto que estava na fresta. Mas ainda deu para ver claramente que os cavalheirismos de Waldir desapareciam na primeira esquina pós-sexo. 
“Merda, merda, merda. Eu tinha que ter deixado ele me ver”. 
Quando voltou a olhar na direção, o pai já tinha tomado novamente o caminho do ostracismo. 
E sua mãe achando que o pai tinha voltado para o Recife, sua terra natal. É certo que ela nunca mais tinha visto Waldir por ali. Tábata, agora, sabia que o pai estava muito, muito próximo. Teve vontade de ligar para a mãe. 
Pegou o seu ônibus até o Centro de Niterói, para pegar as barcas. Como ia dizer a mãe? O que ia dizer a ela? Foi pensando nas palavras certas e na construção da cena.  Precisava de tempo. 
Já na Praça XV, saltando das barcas, ela resolveu ligar. A hora do almoço se fazia presente. Podia falar com a mãe de forma mais tranquila. 
“Foda-se, vou contar”. “Fo-da-se!”. Tábata tinha gostado de pensar no “foda-se”. Degustava e digeria o nome insólito. Pensava que devia ser melhor em um local com eco. 
- Mainha? Tudo bem aí? 
- Oi, minha filha. Tudo sim. Fala logo que tou ocupada. 
- Tou indo pro colégio. 
- Eu sei. Aconteceu alguma coisa? Tá atrasada, não tá não? 
- Tou. 
- E o que aconteceu, Tábata? Teus irmão? Que aconteceu, garota? 
Tábata ficou em silêncio, olhou em volta. Lembrou do pai fechando a calça jeans rasgada, olhando para os lados. Começou a chorar. 
- Só liguei pra dizer que amo a senhora.

[Obrigada especial ao André, pela re-fotografia da cena e personagens. E por ter achado A FOTO.]

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