José


Ele jura que tentava se lembrar, mas não sabia bem a sua idade. Gostava de 53 e dizia, há alguns anos, que esta era a sua idade. Apesar de aparentar mais, "tenho 53" era seu discurso já fazia algum tempo.

Encontrei José num banco, nos jardins do Aterro do Flamengo, num domingo de manhã. Foi por ali que ele morou, por longos anos. 

O tempo sempre fora uma questão subjetiva para ele. Não tinha noção se tinham passado meses ou anos. 

- Eu não conto a passagem do dia e da noite não. O dia vem, a noite vai, e aí a gente vai indo.

Tinha quem o chamasse de filósofo. Talvez por esses pensamentos sobre o tempo e a vida, que ele soltava com tanta facilidade, e fazia muita gente ficar refletindo.

Apesar de solitário, José tinha amigos. Moradores locais, corredores ("de vez em quando tem essa gente que vem, aqui, correr"), crianças e até seguranças lhe traziam comida, água, frutas. Apesar de morador de rua, José nunca soube o que era a fome. Sabia - apesar de não conhecer o tempo - guardar a comida de hoje pra mais um ou dois dias. Dali a um ou dois dias, vinha mais comida, e ele sempre tinha algo em estoque (a sua sacola do Supermercado Mundial).

José não era desmemoriado, nem doente. Apenas não falava do seu passado. Ninguém sabia. 

- Casado? Filhos? Onde você nasceu? Onde você morava? Cadê seus documentos? Quantos anos você tem?

53, dizia ele. Gostava do 53.

Um dia, Araújo, o segurança que trabalhava por ali, e ia passar parte da sua hora do almoço no Aterro, o chamou:

- Zé, Zé! Chega aí, cara!

- Oi seu Araújo. Tudo bem?

- Tudo bem, cara. Olha aqui, você sabe o Raimundo, meu cunhado?

- Lembro que voc... o senhor falou dele sim.

- Me chama de você, cara.

José fez que sim e sorriu, agradecido.

- Então, ele é porteiro num prédio aqui, pertinho. Um prédio, assim, desses pequenos, sabe como? Desses que mora gente. O que eu trabalho é de gente que só trabalha. O dele é só de gente que mora.

- Sei. Residencial.

- Isso aí, irmão. Caralho, hein? Re-si-den...

- Cial. Isso. Residencial.

- Onde tu aprendeu isso?

- Mas você tava falando do Raimundo.

- É, então. Tão precisando de um auxiliar de portaria lá. Parece que tem um quartinho lá, pros caras que trabalham ficar, sabe? Dormem lá, cada um no seu quartinho, e vai fim de semana pra casa. Acho que é isso. E aí, fica a fim? Acho que é um salário mínimo. Não tem carteira assinada não. Mas tu tem documento? Depois eles vê isso pra você, né? 

- É, então... Araújo...

- Tu tem roupa, cara? Ou só essa aí? Porque, assim, tem entrevista não. É só chegar lá, falar com Raimundo, e com o Freitas, que é o chefe de Raimundo. Mas é tudo boa gente.

- Tenho roupa não. Só essa aqui. 

- Aí é foda, né? Vou arranjar uma roupa pra tu. E um banho, né? Porque tu fede. 

- Olha só, Araújo... 

Mas ele já tinha ido. No dia seguinte, Araújo estava ali, com duas bolsas: uma de roupa; outra de utensílios pra banho (toalha, xampu, sabonete de coco, barbeador da Bic).

- Fala, Zé. Bora lá? Consegui de tu tomar banho lá no trabalho mesmo. Tem um canto lá na garagem. Já falei de você pra Raimundo. Já tinha falado, né? O Freitas vai conversar com você hoje às cinco. Dá tempo de você se arrumar. Meu irmão, tem, assim, teu corpo. Não é novo, mas é melhor que essa tua, né?

José sorriu, silencioso. Fez que sim. Acompanhou Araújo até o prédio que ele trabalhava.

- Fala, cara. Esse aqui é meu camarada. Vai lá, depois, conversar com Raimundo. Quebra aí, só pra ele tomar um banho, porque, tá foda.

José acompanhou o senhor até os fundos do prédio, desceu umas escadas, e chegou ao banheiro, que limpo não era, mas tinha água na bica, e um chuveiro. E quente!

Ficou três horas no banho. José continuava não tendo noção do tempo que ia e que vinha. Brincou com o sabão no cabelo, com o xampu no corpo. Chegou a dançar - ele estava sozinho, podia - todo ensaboado. 

- Banho bom... banho bom... banho bom... - cantarolava ele.

Já perto da hora da entrevista, Araújo mostrou a ele onde era o prédio.

- Ali, ó. Vira aqui, tá vendo, aquele verde, ali? Onde tem a banca? É ali. Pergunta pelo Raimundo. Diz que é meu amigo. Ele tá sabendo de tu. Boa sorte aí, cara.

José ganhou até um abraço de Araújo. Agora, limpo, ele era digno de um abraço. Digno, digno. José gostava do som dessa palavra. 

Quando encontrei José, no domingo de manhã, já havia se passado dois meses que ele era auxiliar de portaria do Edifício Carolina. 

Era um homem feliz. Tinha um emprego, tinha salário, tinha cama, tinha travesseiro, tinha seu quartinho. Tinha até chuveiro quente. E vaso sanitário! E papel-higiênico!

No mês que vem, seu Freitas (o chefe da portaria" já tinha dito: "vamos providenciar sua documentação, José. Pra você ter um sobrenome, ter uma certidão de nascimento, uma identidade, e uma carteira de trabalho".

- Eu tenho 53.

- 53 anos? Tu te mais, cara!

- Tenho não. Tenho 53.

- Como que tu sabe?

- Quando que a gente vai lá tirar os documentos?

- Falei com o Francisco, o síndico daqui do Carolina. Ele vai ver isso. Acho que ele vai com tu. Ele trabalha lá no Centro, né? Aí você vai com ele um dia de manhã pra resolver isso, né não?

- É.

- Mas então vai dormir que amanhã é tua folga, cara. 

O amanhã era o hoje, quando vi José, no domingo de sol, no Aterro do Flamengo.

- Aqui também é minha casa - resmungava ele. 

Tirou meia, sapato (ele chamava "aquilo" de sapato), e andou descalço, pelo solo quente. Com nova idade, com nome-e-sobrenome, com casa, emprego, dinheiro, quartinho, chuveiro e xampu, ali era que era sua terra, seu chão. 

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